A NOVA LENDA DA URSA

EU VOU CONTAR-VOS A HISTÓRIA DA MINHA IDA À PRAIA DA URSA.

Assim, com esta entrada à moda do saudoso Raul Solnado. Ele, que andou por cá a fazer rir durante décadas, também foi, a certa altura da sua vida, fotógrafo profissional. Os mais velhos recordam-se disso certamente - aos mais novos aproveito o ensejo para lhes contar como foi.

Estávamos em 1962 – tinha eu uns tenros sete aninhos - quando ele gravou a “História da Minha Vida”, da qual me atrevo a reproduzir o excerto que para aqui nos interessa:

“Arranjei emprego num fotógrafo. Um fotógrafo ‘muita’ bom. Nas fotografias as pessoas ficavam muito favorecidas. Por exemplo, aparecia lá um tipo muito pequenino, gordo, com um ‘ganda’ nariz, um tipo muito sujo, tirava o retrato e depois na prova aparecia um engenheiro hidráulico de olhos verdes que até dava gosto ver.

Mas como eu não sei multiplicar também tinha muita dificuldade de fazer fotografias dezoito por vinte e quatro.

Um dia fui tirar retratos a um casamento e enganei-me, em vez de pôr magnésio na máquina pus dinamite, olha, matei o casamento todo. Bem, salvou-se o padrinho, mas coitado estava tão torcido, estava tão chamuscado, que parecia mais a madrinha.

E despediram-me.”

 

Raul Solnado numa das suas últimas aparições públicas, na Biblioteca Municipal de Oeiras

a 29 de Abril de 2009, durante uma conversa com o jornalista Carlos Vaz Marques num

programa de entrevistas a personalidades da cultura nacional. Faleceu a 8 de Agosto.

 

Deixemos então o pequeno grande Raul e passemos à história da ursa e da sua praia.

Ao longo dos anos vi fotografias maravilhosas tiradas na Praia da Ursa. Vou evitar mencionar os nomes de alguns autores que imediatamente associo a essas imagens, porque seria injusto para os outros de quem, certamente, me esqueceria. Tenho o prazer de conhecer pessoalmente alguns desses fotógrafos e de ter ouvido relatos na primeira pessoa das aventuras que viveram para as conseguir.

Inevitavelmente, sempre que as conversas versam a Praia da Ursa acabam por recair naquilo que é apanágio da zona do Cabo da Roca, a dificuldade de acesso, porventura demasiado íngreme para os fotógrafos do tempo em que as objectivas com focagem automática eram ficção científica.

Nessas tertúlias lembro-me sempre do primeiro passeio fotográfico em que me inscrevi. Em Fevereiro de 2005 um jornal anunciou a realização de um percurso entre as praias do Abano e da Grota (ao contrário da Ursa, ficam a sul do Cabo da Roca), com o fotógrafo José Romão como guia. O preço da inscrição meramente simbólico e uma tarde soalheira fizeram aparecer dezenas de pessoas, muito para além das melhores expectativas do organizador. A maioria desceu as arribas para fotografar mas eu não me aventurei. A vergonha não foi suficiente e limitei-me a observar cá de cima.

- Isto não é nada – dizia um dos montanhistas disfarçado de fotógrafo - a descida para a Ursa é mais difícil.

A partir desse dia uma eventual ida à Praia da Ursa ficou interdita.

 

 

A interdição durou seis anos, até que o amigo Tiago Barata, que já lá tinha estado várias vezes, me desafiou a acompanhá-lo.

- Embora lá, vais ver que é fácil, fazes o caminho nas calmas – dizia ele com grande convicção.

A Praia da Ursa deve o seu nome à lenda que diz que há milhares de anos, quando os gelos dos glaciares cobriam a região, os ursos polares vagueavam por ali em busca de caça. Quando o degelo começou, os deuses disseram a todos os animais para abandonarem a beira-mar, mas uma mãe ursa teimou em permanecer no território onde tinha nascido. Então os deuses, enfurecidos, transformaram a ursa em pedra e ela ali permaneceu, cerca de cem metros acima do nível do mar, altiva e impenetrável.

- Embora lá, vais ver que é fácil.

Confirmada a maré baixa à hora do pôr-do-sol, ala pela arriba abaixo com duas máquinas reflex na mochila, cada uma com sua zoom montada (não troco de objectiva à beira-mar), tripé, aqui com a dupla função de bastão, água e umas barras energéticas para enganar a fome. Afinal de contas a sessão consistia somente em fotografar no final da tarde e um piquenique estava fora de questão.

A descida fez-se cuidadosamente para não haver surpresas com o trilho irregular e muito inclinado, cada vez mais escorregadio conforme nos íamos aproximando da água. Sobrava-nos tempo porque é timbre da dupla partir cedo. Uma hora, talvez um pouco mais desde o início da caminhada, e a chegada premiava o esforço.

 

 

- Eu não te disse que era nas calmas? – regozijava-se o Tiago.

Quando respirei fundo e me senti finalmente na praia a sensação que tive foi de ter entrado noutra dimensão. Tive de racionalizar a ausência de perigos em estar ali, mas intimidava a grandiosidade do que nos rodeava - aquelas arribas enormes por cima das nossas cabeças e nós, expostos, naquele pequeno palco de areia – o que me provocou uma vertigem semelhante às que sinto nas alturas.

Olhando em frente o mar pareceu-me um tanque prestes a transbordar a qualquer momento, simulacro de um qualquer efeito cinematográfico de última geração, mas com sons e cheiros muito reais impossíveis de replicar.

 

 

Refeito de tanta emoção, havia que trabalhar. Escolher a perspectiva, montar o tripé, proteger o equipamento dos salpicos, esperar pela luz ideal, enfim, aquele prazer peculiar, apreciado por muitos, que se tem quando se está a fotografar, desafiando o tempo a deixar-se apanhar naquele instante decisivo em que disparamos.

 

 

O pior estava para vir. Ou o melhor. Depende, como muitas vezes na fotografia, da perspectiva. A parceria com o Tiago também se caracteriza pela máxima do só-mais-uma-fotografia-e-arrancamos. Mais uma eu, mais uma ele, quando finalmente iniciámos a subida de regresso estava a cair a noite.

 

 

A humidade nas pequenas lajes que formavam o trilho, o cascalho ameaçando constantemente uma escorregadela, a ausência de luz natural, o tremendo peso da mochila e um início de escalada demasiado rápido devido à ansiedade começaram a fazer estragos.

O Tiago, com uma irritante facilidade em subir aqueles degraus esculpidos pela passagem das pessoas ao longo dos anos, ia à minha frente e conforme ganhava distância parava e incentivava-me:

- Temos muito tempo, sobe devagar – dizia tentando demonstrar serenidade.

Maldita subida que nunca mais acabava e a noite que não me deixava ver quanto faltava.

- Descansa um bocadinho. Respira bem – aconselhava o Tiago na paragem seguinte.

O meus pensamentos nessa altura:

Como é que ficou de noite tão depressa? Porque é que não trouxe só uma máquina com uma objectiva e uma mochila mais pequena? Será que estou com medo ou é somente cansaço e ansiedade? Incrível não haver rede de telemóvel para poder avisar em casa que, malgrado o avançado da hora, está tudo bem. Qual o número da TMN para reclamar da falta de rede?

Quando, finalmente, no cimo da arriba, com a sensação de um náufrago acabado de chegar a terra firme, tomei a irrevogável decisão de nunca mais repetir a descida à praia da Ursa.

Tudo isto aconteceu no dia 22 de Abril de 2011.

Mas a história não acaba aqui.

No dia seguinte o jornal Correio da Manhã publicava esta notícia:

 

 

A rocha que dava o nome à praia tinha-se desmoronado precisamente na véspera de tão inesquecível expedição. Um olhar mais atento às fotografias, que tanto esforço exigiram, mostrava claramente o topo do rochedo mais claro e pontiagudo do que antes.

Depois de muito pensar sobre o sucedido, acho que descobri uma razão para o desmoronamento:

A ursa resolveu debandar porque estava farta de posar em centenas de sessões como modelo sem nunca ter sido devidamente remunerada.

É um fenómeno muito vulgar neste mundo da fotografia, pagar mal, ou até nada pagar, umas vezes aos modelos, outras aos próprios fotógrafos.

A verdade, verdadinha, é que a ursa se cansou e foi embora.

Ajudem-me a divulgar a nova lenda.